domingo, 16 de outubro de 2011

Carta de um companheiro de Juvenal

No dia  4 de Junho, tivemos uma conversa sobre as prisões em portugal, evocando a memória do Juvenal Fernandes que, dentro das prisões, lutou contra a injustiça do sistema prisional, vindo a morrer depois de uma greve de fome, mal acompanhada pelos médicos e carcereiros de serviço. Segue-se uma carta enviada para contribuir para a conversa por um companheiro do Juvenal:

Companheiros
Falar do Juvenal é tão natural como natural foi a nossa vivência. O nosso conhecimento aconteceu na cadeia do Montijo em 1976 e minutos depois de ter entrado na cela o Juvenal pergunta-me; então companheiro vens fazer-nos companhia? É verdade meu amigo, respondi.
E pensas ficar cá muito tempo, re-pergunta o Juvenal. Não, seguramente ainda hoje me vou embora, e você já está aqui há muito tempo? Olha, eu sou o Juvenal e tu como te chamas, foi a resposta e pergunta que tive do meu novo amigo.
Chamo-me Edmundo e não penses que estou a brincar quando te digo que espero ir ainda hoje embora, o juiz com um simples telefonema resolvia o meu assunto mas preferiu resolvê-lo através de telegramas e logo que o tribunal de Faro confirme, que já cumpri a prisão que o juiz do tribunal do Barreiro afirma eu ter por cumprir, abrem-me as portas. E contei-lhe o delito que me levou á prisão.
Quando terminei de contar o crime que me conduziu aquela situação, o Juvenal pronunciou as seguintes palavras: são uns sabujos.
Pois são, respondi, mas podes ter a certeza que se não me abrirem as portas até amanha à noite abro-as eu próprio, é o tempo que têm para resolverem o meu problema.
Enquanto o Juvenal enrolava um cigarro, expliquei-lhe o plano que tinha para fugir que não era outro que o utilizado na fuga da prisão de Faro, que tão bons resultados tinha dado.
O Juvenal disse-me que podia contar com ele e com mais alguém da sua confiança. Claro que conto contigo e com quem quiser alinhar porque a ideia é deixarmos as portas da prisão abertas.
E pronto, quando os guardas fecharam as portas das celas, o Juvenal estava ao corrente do meu plano e eu ao corrente do que tinha ele e os seus amigos para se pirarem.
Chegados aqui, devo dizer aos companheiros que tiveram o privilégio de viver com o Juvenal, que ou acreditávamos ou não acreditávamos, com ele não havia meias medidas.
A primeira noite no presídio do Montijo passou, e se o Juvenal e amigos alinhassem como tinha prometido, seguro que íamos embora quando quiséssemos porque a prisão tinha pouca segurança.
O Juvenal pensava o mesmo, porque após o café reuniu um grupo de companheiros, como ele os tratava, preparados para a fuga, que seria realizada no dia seguinte. O Juvenal era seguido pela sua lealdade, era um condutor de homens.
Eu fui solto nesse dia à noite e o Juvenal pirou-se poucos dias depois do tribunal do Barreiro e aqui terminou a primeira vivência com o companheiro Juvenal. Voltámos a encontrar-nos nove anos depois no presídio do Vale do Judeus e foi assim: eu tinha acabado de ser extraditado de Espanha e após uma semana na penitenciária de Lisboa fui parar à observação do Vale. Ora como recreio dava para as celas da Ala A que funcionava como pavilhão para os castigados, ouvi chamar por mim; oh Montano, precisas de alguma coisa? Sou o Juvenal, lembras-te? Se me lembro, os amigos não se esquecem. Companheiro, corrigiu-me Ele.
Contei-lhe as minhas aventuras e desventuras e o companheiro Juvenal contou-me as dele, e repetiu as primeiras palavras que trocamos no Montijo: Montano, não te esqueças que são uns sabujos.
Vamos lá terminar a conversa ou quer que o recreio termine? Sentenciou o Guarda. Então já não podemos falar com os amigos? Você vai falar lá para dentro, porque o seu recreio terminou. Tens razão companheiro, são uns autênticos porcos.
Senhor Seixas senhor Seixas a coisa começa mal.
Mau, mal começa o caralho. O que é que está a dizer? Pergunta o meu carcereiro. Estou a dizer-lhe que mal começa o caralho, ouviu?
Até amanhã Juvenal, depois conversamos.
Claro que conversamos, se não for aqui é na Ala B que é onde eu estou e tu vais parar, sabes que estamos juntos companheiro. E de facto uns dias mais tarde lá me encontro novamente com o Juvenal na dita Ala, onde posso apertar a mão ao nosso Amigo.
Companheiros, neste preciso momento estou a ver a cara do Juvenal a dizer-me: Montano temos que dar volta a isto, logo quando voltar do trabalho falamos, está bem?
Fico à tua espera Companheiro. E à tarde como prometido o nosso amigo convidou-me a entrar na cela, puxou a porta e entregou-me uma folha de papel escrita, dizendo-me para a meter no bolso e que a lê-se com vagar na minha cela e depois que lhe dissesse o que pensava sobre o assunto.
Como os amigos devem calcular lá estava o Juvenal mais uma vez a reivindicar os nossos direitos e eu pedi-lhe para acrescentarmos outros direitos que pensávamos serem justos e que nos eram devidos. Documento redigido e toca a convidar os colegas para o assinar depois de o lerem.
Aconteceu que ainda a reivindicação não tinha chegado ao destino, já nós estávamos a ser revistados pelos sabujos assim como as nossas celas .
Não encontraram o documento redigido pouco antes, mas eu e o companheiro Juvenal fomos fechados uma semana na cela sem recreio. A coisa não começava mal.
O castigo cumprido e a vida voltou ao normal, eu com uma hora de recreio pela manhã outra pela tarde e o Juvenal a trabalhar na montagem eléctrica dos automóveis na garagem.
Montano, olha se consegues uma consulta em Caxias para breve, temos possibilidades de dar o pinote. Nem eu nem o Juvenal conseguimos a desejada consulta em Caxias, o único que tirou proveito do arranjo que o Juvenal tinha feito na carrinha foi um companheiro catalão, de cujo nome não me recordo. Poucos dias depois do Catalão fugir da carrinha, o Juvenal disse-me que o homem já se encontrava em Barcelona.
A verdade é que a partir do dia em que o espanhol se fugou, a vida do nosso amigo no Vale dos Judeus tornou-se mais complicada. O Juvenal era chamado à atenção por tudo e por nada e quem o conheceu, sabe como ele reagia às provocações. O Juvenal ou fazia greve de fome individual, ou então convocava assembleias gerais que terminavam sempre num fiasco. Muito recluso mas poucos homens para encetar uma coisa séria.
Um belo dia o pessoal recusou-se a ir trabalhar e o Juvenal reuniu-nos para uma palestra na Ala B, para cada um de nós expor a sua ideia, pois o pessoal recusara-se a trabalhar, sem reivindicar fosse o que fosse. Cada qual expôs a sua ideia e eu limitava-me a ouvi-los, pois, por incrível que pareça, ninguém concordava com ninguém. Então Montano não dizes nada? Olha Juvenal, sabes o que dizem na minha terra? Na minha terra dizem que o ferro há que malhá-lo enquanto está quente porque malhá-lo depois de frio é perder o tempo, e se param a greve como muitos de vocês o desejam, podem ter a certeza que no Vale dos Judeus não há mais greve, porque amanhã ou depois de amanhã uns vamos parar a Coimbra, outros para Paços de Ferreira, outros para o Pinheiro da Cruz e assim terminou a famosa greve.
Dias mais tarde, deram um desafio de futebol na televisão e estando o Juvenal a meu lado disse-me: queres ver a que vou montar num abrir e fechar de olhos. Força Juvenal não te esqueças que estamos juntos. O Juvenal dirigiu-se a televisão e desligou-a e em seguida dou uma palestra como só ele o sabia fazer. Não sei se o Juvenal se apercebeu, mas eu fiquei com a ideia que ao desligar a televisão o Juvenal arranjou uma quantidade de inimigos.
Pouco tempos depois destes acontecimentos o Inesquecível Juvenal entrou numa greve de fome e quando o levaram para o hospital de Caxias já se encontrava bastante debilitado. Dias mais tarde tivemos a noticia que o Juvenal tinha falecido.
Paz à sua alma e um abraço do amigo Trasmontano.




Edmundo Calado Seixas
Maio de 2011-06-16