Recensões

Aqui publicaremos recensões de livros. Livros que podes encontrar na biblioteca ou que a biblioteca gostaria de adquirir, dado o seu valor para os objectivos a que a biblioteca e observatório da sociedade globalizada se propõe.
Estamos abertos a publicar recensões propostas para o endereço de email da biblioteca (boesgbiblioteca@gmail.com) ou por correio ou pessoalmente no espaço da biblioteca.



Agua, ¿mercancía o bien común?
Autores:  H.Rosemberger, R.Germinal, A.Ordiguer e M.Gavaldà 
Edição:  Alikornio Ediciones
Ano: 2003


Este livro editado, há já oito anos, no Estado espanhol pelas edições Alikornio, escrito por quatro autores, H.Rosemberger, R.Germinal, A.Ordiguer e M.Gavaldà, ajuda-nos a compreender uma realidade, a apropriação de um meio natural, neste caso o controle da água no mundo, por parte de umas poucas e poderosos empresas multinacionais e a sua conversão numa mercadoria da qual esperam obter os mais elevados lucros. No decorrer do século passado e principalmente nas últimas décadas, a água passou a ser um bem exclusivamente económico que tem de ser «regulado» pela «lei do mercado». Assim, um bem que se pretendia comum, ficou submetido à economia, a qual entende a vida como escassez, por conseguinte, têm que gestionar a escassez deste bem já não comum, para benefício dos detentores de títulos de propriedade ou de gestão.
Mas, este livro vai mais longe, se por um lado denuncia as políticas, que tanto à escala internacional como local, impulsionam este processo de mercantalização da água, também apresenta exemplos de lutas sociais que se opõem a este processo e a estas políticas.
Na primeira parte, El assalto al agua, abordam-se estas acções de mercantalização e privatização da água, revelando os seus impulsionadores e protagonistas: as multinacionais, ajudadas por diferentes estados nacionais e apoiadas por burocracias poderosas como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, e as suas diferentes estratégias que os levam ávidamente a tratar de conseguir o máximo lucro num curto período de tempo. E, se são eles que ganham, muitos mais somos aqueles que perdemos. Em Agua en la memoria, entre outras coisas, critica-se aquilo que as terminologias da «nova cultura da água» têm de falácia e de propaganda, assim como a debilidade e as limitações do ecologismo oficial e o seu papel como cogestor da miséria ecológica a partir da análise crítica das políticas territoriais e hídricas que no Estado espanhol culminaram no Plano Hidrológico Nacional.
A segunda parte mostra-nos dois exemplos de lutas sociais que se opuseram decididamente às arbitrariedades das diferentes administrações estatais e da sua actuação a favor do controle da água pelas multinacionais. Um dos exemplos é Las periferias de Barcelona en lucha contra los negocios del agua, donde se narram as resistências dos vizinhos de muitos bairros de Barcelona contra o abusivo encarecimento do recibo da água perpetrado pela empresa Aguas de Barcelona e as administrações ao seu serviço: a Agencia catalana del agua e a Entidade metropolitana do meio ambiente. São expostas as razões, a luta que durou quase dez anos, de 1991 até 1999, como se organizaram, as contradições que se operaram e como terminou. Em La guerra del agua en Bolivia, explica-se como a decidida oposição das pessoas, primeiro em Cochabamba e depois em toda a Bolívia, deu as voltas aos planos do Estado e das opacas burocracias como o Banco Mundial obrigando um consórcio multinacional, ao qual o Estado tinha cedido a gestão da água, a retirar-se da Bolívia com o rabo entre as pernas. A luta foi muito dura, nos últimos treze dias e com o estado de sítio declarado pelo governo, o exército boliviano matou cinco pessoas, deixando feridas 48 pessoas e centenas de detidos. Neste caso, o poder talvez não mediu bem os seus passos frente a uma questão, a água, mas, a sua resposta, perante a acção das pessoas que se negaram a submeter-se aos seus desígnios, foi tão brutal como cruel e acabou por revelar o seu verdadeiro rosto. A ferocidade do Estado serve a ferocidade e avidez do capital, para ambos, a vida, toda a vida, é economia e, por conseguinte, escassez.

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TV Lobotomie
Autor:  Desmurget Michel
Edição:  Max Milo Éditions
Ano: 2008


« - Sophie, dois anos de idade, vê televisão 1 hora por dia. Isso duplica a possibilidade de vir a ter, quando for grande, problemas de concentração.
- Kevin, quatro anos, assiste a programas juvenis violentos como o DragonBall Z. Isso quadruplica as suas possibilidades de ter problemas de comportamento quando for para a escola primária.
- Lina, quinze anos, vê séries televisivas como Donas de Casa Desesperadas. Isso triplica a possibilidade de vir a ter uma gravidez não desejada.
- Entre os quarenta e os sessenta anos, Yves viu televisão 1 hora por dia. Isso aumenta em um terço a possibilidade de desenvolver a doença de Alzheimer.
- Henri, sessenta anos, vê televisão quatro horas por dia. René, o seu irmão gémeo, contenta-se com metade. Henri tem duas vezes mais possibilidades de morrer de um enfarto do que René.»
Existem flagelos tão grandes que acabamos por não conseguir vê-los. O automóvel seguramente, mas também e em particular a televisão.
São inúmeras as falsas críticas destinadas a legitimar melhor a televisão, excepcionais são os espíritos temerários que a colocam verdadeiramente em causa. Michel Desmurget, doutor em neurociências, é um dos que faz essa crítica fundamentando-a em numerosos estudos científicos.
A obra é ainda mais interessante quando o cientista junta nos testemunhos a sua família, a qual abandonou de vez esse embrutecedor. Para o autor, é evidente que a televisão «fabrica mediocridade porque “é a sua natureza”». O diagnóstico é implacável: televisão ou a vida, é preciso escolher.

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Nós
Autor: Evgueni Zamiatine
Edição: Antígona
Ano: 2004

Ievgueni Zamiantine (1884-1937), editado em Portugal na Antígona, foi um dos escritores russos pós-revolucionários mais lúcidos e imaginativos, e ao mesmo tempo um dos mais incómodos para o sistema soviético. Mestre da sátira e da ironia, Zamiantine cumpriu à letra a célebre máxima de Anatole France: “Ensinemos os Homens a rir da estupidez e do mal que neles existe a fim de não cairmos na tentação de odiá-los.”
Zamiantine incorporou o satírico na sua obra com um propósito claramente irreverente para com todo o poder autoritário, numa ardente defesa da liberdade sem restrições. Ele mesmo reconhecia que «a verdadeira literatura somente pode ser criada por loucos, heréticos, sonhadores, rebeldes e cépticos, e não por funcionários eficientes e leais. De outro modo, a literatura russa só terá um futuro: o seu passado».
Pese ter apoiado energicamente a revolução russa, Zamiantine ria-se dos escritores proletários que afirmavam ser a «superestrutura cultural do bolchevismo» e do seu propósito em produzir uma literatura de realismo socialista. Zamiantine classificava esta nova literatura como «retirada dos anos 70 do século passado». Os obstinados escritores proletários defendiam a absoluta primazia do Partido em todos os aspectos da vida e reclamavam uma severa vigilância sobre os companheiros de viagem – termo designado por Trotski para qualificar os intelectuais não bolcheviques – e sobre os escritores burgueses, qualitativo aplicado sistematicamente aos dissidentes.
Zamiantine converteu-se rapidamente num obstáculo que o Partido não podia assimilar nem neutralizar. Ao mesmo tempo que os panegíristas do regime reclamavam uma “arte do Partido”, infalível, aliciadora e criadora de arquétipos épicos, ameaçavam os inconformistas com a proibição da publicação das suas obras e com drásticas medidas repressivas (as execuções literárias eram normalmente antecipadas por execuções físicas ou pelo desaparecimento dos escritores que não satisfaziam as exigências do Partido, como foi o caso de Isaac Babel, Pilniak ou Mandelstam), Zamiantine demonstrava possuir coragem como intelectual contestatário, e definiu a Outubro, revista mensal que dirigia os piores ataques contra os escritores burgueses, como uma revista que «apenas tem a ver com uma das artes: a arte militar; está escrita simplesmente como uma nova arma do Partido, para além das conhecidas minas e bombas de gás».
Neste ambiente, pouco propício à liberdade criadora, o Partido prosseguiu impondo a sua ideocracia em todos os âmbitos do conhecimento e da actividade intelectual. A criactividade artística dos cidadãos soviéticos ficava desse modo submetida ao mesmo sistema da planificação controlada que se aplicava à produção de alimentos ou de máquinas. Após o fértil período artístico dos anos vinte, a literatura sucumbiu perante a engrenagem burocrática e tornou-se uma actividade disciplinada e regulamentada debaixo da vigilância da União dos Escritores Soviéticos, organismo ocupado em assegurar que as personagens e as situações literárias coincidissem com a imagem oficial da vida real. A glorificação do trabalho e a exaltação do maquinismo e do racionalismo científico converteram a tecnologia numa nova religião do Estado, impondo-se como eixo temático de toda a manipulação artística. A arte, reduzida a uma expressão de adesão ideológica, lançou os poetas na composição de medíocres versos laudatórios às centrais hidroeléctricas dos Urais ou às minas da Sibéria. Um grotesco e doentio novo humanismo idolatrava as manifestações mecânico-industriais do ser humano, desde a transformação do meio ambiente à capacidade produtiva das brigadas de trabalhadores de choque. Nos anos 30 políticas do movimento Prolecult, cujas bases estabeleciam que a «arte é um dos instrumentos mais poderosos para organizar o esforço da classe. A Nova Arte deve reflectir o mundo do ponto de vista da colectividade trabalhadora» (Malinovski, A arte e a classe operária).
Na realidade, os olhos da colectividade trabalhadora eram os olhos do Partido, e o ponto de vista era deste e não daquela. O Partido proclamava a utilidade social de adestrar regimentos de poetas-propagandistas, do mesmo modo que eram adestrados os Guardas Vermelhos. A escola literária oficial começava a impor-se com a crença de que «os índividuos devem ser representados na arte como ilustrações das leis dialéticas do desenvolvimento económico».
Em pleno processo de desumanização, «a Revolução criou um estilo neo-conservador. O Partido promoveu uma escola artística que pode considerar-se como a mais provinciana e reaccionária da literatura do séc. XX. A afirmação da estética comunista (realismo na forma e socialismo no conteúdo) cerceou a experiência espontânea da vanguarda literária dos anos vinte. Os dirigentes do Partido codificaram esta nova estética comunista e elevaram o realismo socialista à altura de conceito doutrinário, como parte do credo oficial». (Slomin, Escritores e problemas da literatura soviética, 1917-1967).
A literatura ficou cativa do Estado nos anos 30, convertida em apêndice do Plano Quinquenal. E em veículo ao serviço do denominado doutrinamento das massas.
Decididadmente, Zamiantine não encaixou neste campo de concentração literário. Como intelectual de temperamento e devastadora ironia, sofreu os insultos e afrontas do Partido. A factografia (literatura do realismo socialista) proclamou oficialmente a morte da ficção literária. Propagandistas como Tretiakov propunham criar fábricas literárias, oficinas presididas por desenhadores e montadores que confeccionassem a literatura das massas (massolit em série. Isto não impediu que o próprio Tretiakov masis tarde fosse preso e executado durante as purgas de Estaline. Nestas circunstâncias, o Estado soviético não estava disposto a tolerar que se questionasse a sua prepotência. A ironia, como atitude intelectual transgressora e de desafio perante o totalitarismo, e como sofisticada ferramenta estilística, era inaceitável para os defensores do pitoresco Novo Proletário. O irónico Zamiantine foi atacado pelo Partido Comunista da União Soviética, digno sucessor da autocracia czarista, rotulando-o de “subversivo perigoso”, especialmente após a publicação no estrangeiro da sua obra Nós, narrativa que denuncia a brutalidade liberticida e policial do regime soviético.
Nós situa-se numa cidade coberta de vidro para evitar as variações intempestivas do tempo e a insubordinação do clima. Os habitantes são designados por números e letras, vogais para as mulheres consoantes para os homens; usam uniformes de um azul acinzentado; o trabalho, o pensamento e o ócio estão regulamentados por “autoridades sábias” dirigidas pelo Benfeitores, e só podem ter relações sexuais nos dias e nas horas rigorosamente prescritos e assinalados em bilhetes cor de rosa, especialmente emitidos por organismos governamentais. As casas são de vidro, transparentes, para facilitar o controle policial. Apesar disso, regista-se a presença de rebeldes audazes, perseguidos por cometerem o delito do livre pensamento.
Escrito em 1924, Nós precedeu em alguns anos as obras assombrosamente semelhantes de Aldous Huxley, George Orwell e outro autores. Dentre estes podemos destacar o checo Karel Capeck, autor de duas cativantes jóias da literatura fantástica: A Guerra das Salamandras e RUR peça de teatro que nos apresenta uma ditadura cibernética que mantém a humanidade na escravidão. Capeck concebeu para esta obra o termo Robot, neologismo que se tornou internacional, derivado de uma palavra eslava que significa trabalho sem remuneração.
O texto de Nós circulou clandestinamente pela defunta U.R.S.S. e as autoridades declararam o escritor “contra-revolucionário”. Ao ficar proscrito viu assim suspensa a edição de todas as suas obras. Numa carta célebre, dirigida a Estaline, Zamiantine queixou-se amargamente da hostilidade de que era objecto: «Sei que tenho o incómodo costume de não dizer aquilo que parece mais vantajoso neste ou naquele momento, mas apenas aquilo em que creio de verdade. Entre outras coisas, nunca ocultei o que penso sobre a servidão literária, a obsequiosidade e a mudança de casaca. Fui condenado, sem processo, àquilo que para um escritor equivale à pena capital: o silêncio».
Zamiantine acabou por obter de Estaline autorização para abandonar o país, só desejando regressar à U.R.S.S. quando fosse possível «exprimir dedicação às grandes ideias sem se arrastar diante de homens pequenos, e quando a atitude para com o artista da palavra mudasse».
Não regressou. Morreu em Paris, em Março de 1937. A imprensa soviética não mencionou a sua morte e o silêncio oficial prolongou-se para sempre. O ostracismo e o esquecimento foram o destino deste revolucionário independente e íntegro. Zamiantine é a encarnação das palavras de Oscar Wilde: a sociedade poderá perdoar ao criminoso mas nunca ao sonhador.
A sua morte foi compartilhada por muitos outros escritores soviéticos. Mikail Zoschenko era um deles. Brilhante satírico, viu-se atacado pelos críticos comunistas, que lhe aplicaram o rótulo de “freudiano pernicioso” e “socialmente nocivo”, por se ter atrevido a escrever sobre as suas experiências pessoais (subjectivismo burguês) enquanto os seus companheiros enalteciam a defesa heroica da pátria e contribuíam para levantar a moral do povo. Zoschenko também foi atacado por ter retratado o cidadão soviético com demasiada liberdade. Foi expulso da União dos Escritores e a sua obra As aventuras de um Mono qualificada como “calúnia ao povo soviético”.
Zamiantine e Zoschenko eram criadores demasiado sinceros para mentir. Por isso foram silenciados e a sua obra proscrita.